sábado, 12 de março de 2016



Marcião, suas heresias e a finalização do cânone sagrado
(A seguir, a tradução do capítulo XXIII do livro The Spreading Flame, de F. F. Bruce).
Tradução de João A. de Souza Filho
Traduzido em março de 2016

Lá pelo ano 140 d.C. a igreja em Roma recebeu a visita de um homem chamado Marcião, natural da Ásia Menor que por este tempo se engajara em controvérsias doutrinárias com alguns dos líderes de sua região. Expôs seus pensamentos aos presbíteros de Roma, e quando o que ele expôs se tornou inaceitável aos presbíteros, ele se afastou da comunhão com eles e começou sua própria igreja.
Falaremos um pouco mais sobre este homem adiante (ver p 251).
Destacamos aqui que Marcião repudiava totalmente a autoridade do Antigo Testamento, e também não aceitava a autoridade dos apóstolos de Jesus, a não ser Paulo. Ele afirmava que os demais apóstolos e seus discípulos haviam corrompido o ensinamento de Jesus, misturando-o com as crenças judaicas. Na realidade ele cria que o próprio Jesus, longe de aceitar a autoridade do Antigo Testamento veio para liberar as pessoas da escravidão do Deus do AT, revelando-lhes um Deus superior, bondoso e misericordioso, a quem Jesus chamava de Pai e que esta verdade teria ficado obscurecida nos registros dos evangelhos por corrupções judaizantes. Os escritos de Paulo, o único dos apóstolos que não se apostatou dos ensinamentos de Jesus, também sofreu a influência dos judaizantes, e precisavam, portanto, do discernimento e do escrutínio de Marcião para que fossem restaurados ao seu texto verdadeiro e original. Na realidade, Marcião compilou um cânone das escrituras para substituir o cânone do Antigo Testamento, que para ele fazia parte de uma ordem abolida e obsoleta. Este novo cânone consistia de duas partes: Uma parte chamada de “o evangelho” (uma edição “purificada” do evangelho de Lucas, mais condizente), e a outra chamada de “O apóstolo” (uma edição similar “purificada” das primeiras dez epístolas paulinas).
A compilação deste Canon foi um desafio e um incentivo à igreja de Roma e as demais igrejas que tinham a mesma doutrina. Se essas igrejas negassem que o cânone de Marcião era verdadeiro, então, tinham pela frente o desafio de mostrar qual era o verdadeiro cânone bíblico. Assim, reagindo aos ensinamentos de Marcião é que encontramos as mais antigas e explícitas declarações pelo lado da igreja de Roma a respeito da definição do cânone cristão. Isto não quer dizer que os líderes da igreja católica (até esse tempo a igreja era católica, isto é, universal, e não romana. NT) não tivesse um cânone definido e reconhecido. De fato, alguns gnósticos concordavam substancialmente com os líderes da igreja em Roma quanto aos limites do cânone do Novo Testamento. Portanto, sobre o testemunho de Tertuliano, o líder gnóstico Valentino, contemporâneo de Marcião, aparentemente usava o cânone completo da igreja católica – evidentemente um cânone maior do que o de Marcião. E o testemunho de Tertuliano foi confirmado depois que se descobriu o texto Evangelho da Verdade de Valentino. “Ao redor de 140-150 d.C., uma coleção de escritos ficou conhecida em Roma e aceitas como verdadeiras e que eram idênticos aos do nosso Novo Testamento” [1]
A resposta comum da igreja em Roma às reações de Marcião foi: Não rejeitamos os livros do Antigo Testamento, nós os aceitamos porque Cristo os citou com muita autoridade. A autoridade divina dos livros dessa nova era (referindo-se ao NT), não anula nem supera a do AT, mas caminha lado a lado com ele. Quanto a esses livros “Os Evangelhos”, que reconhecemos conter não apenas um relato do evangelho, mas quatro relatos, incluindo a verdadeira versão que Marcião publicou completamente mutilado. “O Apóstolo” que reconhecemos que contém as treze epístolas de Paulo, mas dos demais apóstolos também. E conectando “o Evangelho” e “O Apóstolo”, percebe-se uma ênfase especial no segundo volume da história escrita por Lucas, que Marcião não incluiu em seu cânone (O livro de Atos). Este documento, conforme é apresentado, comprova irrefutavelmente o apostolado de Paulo e apresenta evidências do apostolado de outros apóstolos também. Esse eixo funcional do cânone cristão é apreciado agora, como não era antes, e tal função é enfatizada por haver sido colocado entre “O Evangelho” e “O Apóstolo”. É daquele tempo, sem dúvida, que veio a ser chamado de “Atos dos Apóstolos”, ou ainda, como um documento anti-marcionita exageradamente o chama de “Atos de Todos os Apóstolos”.
A primeira menção que se conhece do título “Atos dos Apóstolos” vem de uma série de prefácios escritos para os quatro evangelhos, como parte da reação aos ensinamentos de Marcião. São conhecidos como Prólogos Anti-Marcião aos Evangelhos, e tinha como alvo estabelecer as razões de se reconhecer os quatro evangelhos como canônicos. Foram escritos primeiramente em grego, no último quarto do segundo século. O prólogo de Mateus desapareceu; os de Marcos e João existem em traduções latinas, e quanto a Lucas permanece no original grego bem como em latim.
O prólogo ao evangelho de Marcos é incompleto, e um fragmento diz:
Assim, Marcos afirma, o Marcos chamado de “selo-indicador” porque seus dedos eram curtos comparados à proporção física do seu corpo. Ele era o intérprete de Pedro, e depois da partida de Pedro entregou-se à tarefa de escrever o evangelho em alguma parte da Itália”.
Este relato do evangelho de Marcos é baseado nas declarações de Papia, bispo de Hierápolis na Frigia, nos primeiros anos do segundo século, que escreveu uma obra em cinco volumes intitulada An Exposition of the Dominical Oracles. Mas, a informação de que Marcos era chamado de “selo-indicador” não sobreviveu aos fragmentos dos escritos de Papias. [2] O apelido pode ter surgido devido ao que constava no prólogo. Recentemente surgiram relatos de que a ponta de seus dedos foram decepadas quando ele se interpôs diante de uma espada no Jardim do Getsêmane na noite em que Jesus foi preso. [3] Mas, possivelmente o epíteto pode ter sido atribuído, não às suas mãos, mas ao Evangelho que escreveu, porque o final de seu evangelho parece que foi mutilado. O epíteto, neste caso, não deveria ser dado ao evangelista, mas ao seu evangelho, porque o final do evangelho parece ter sido mutilado [4] era fruto de uma tradição que o escritor do prólogo não entendeu corretamente.
Então, neste prólogo vem uma longa descrição de Lucas:
Lucas era natural de Antioquia da Síria, médico, discípulo dos apóstolos. Mais tarde se juntou a Paulo até que este foi decapitado, servindo ao Senhor sem empecilhos porque não tinha esposa nem filhos. Morreu na Beócia (distrito da Grécia) aos 84 anos de idade, cheio do Espírito Santo. Assim, depois que dois evangelhos haviam sido escritos – Mateus na Judéia e Marcos na Itália, Lucas escreveu seu evangelho na Acaia, por inspiração do Espírito Santo”.
“Lucas afirmavam que os outros evangelhos foram escritos antes do dele, mas que ele tinha a obrigação de enviar aos crentes gentílicos um relato completo do curso dos acontecimentos, e deveria fazê-lo o mais corretamente possível. Seu objetivo era evitar que os gentios ficassem cativos das fábulas judaicas, e enganados por heresias e imaginações vãs, afastando-se, assim, da verdade. Portanto, logo no começo, Lucas nos relatou a história do nascimento de João Batista como a parte mais importante do relato evangélico, porque João marca o começo do evangelho, pois ele foi o precursor de nosso Senhor, associando-se com ele na preparação do Evangelho, na administração do batismo e na comunhão do Espírito. Este ministério de João foi predito pelos doze profetas. [5] Mais tarde o mesmo Lucas escreveu os Atos dos Apóstolos. Mais tarde ainda o apóstolo João escreveu o Apocalipse na ilha de Patmos, e depois o seu evangelho na Ásia.
A declaração de que Lucas escreveu seu evangelho na Acaia para os cristãos gregos, talvez tenha como objetivo dar aos cristãos gregos um dos evangelhos sinópticos, sendo que os demais foram escritos para os judeus da Judéia e da Itália respectivamente. A ênfase do prólogo anti-marcionita é óbvia quando refletimos que Marcião cortou (dentre outras coisas) todo o relato do nascimento e do ministério de João Batista de sua edição do evangelho de Lucas, já que o relato ligava intimamente a história de Jesus com a ordem do Antigo Testamento, que Marcião repudiava. A referência aos “Atos dos Apóstolos”, a primeira ocorrência desse nome – lembra-nos da omissão desta obra do cânone de Marcião, daí a importância que a igreja deu ao livro de Atos.Quanto às referências ao apóstolo João, que está em destaque no prólogo anti-marcionita do evangelho de João, e que deixa a todos intrigados é:
O evangelho de João foi publicado e entregue às igrejas pelo próprio João quando ele ainda estava vivo, conforme o relato de Papia de Hierópolis, discípulo amado de João cujo relato está em seus cinco livros exegéticos. Ele escreveu o evangelho de João ditado pelo próprio João. Mas, o herético Marcião era rejeitado por João, depois ser desaprovado em seus pontos de vista contrários. Marcião havia levado cartas de seus escritos a ele de seus irmãos no Ponto”.
Agora, aqui está o berço dos mais fascinantes problemas. O texto latino, onde este prólogo ficou preservado, está ininteligível ou corrupto em várias partes. Fizemos uma emenda tácita numa das corruptelas onde diz “seus cinco livros exegéticos”. Ali a fonte da corruptela é evidente e a emenda também. A referência é sobre o texto acima mencionado de Papia, Exposition of the Dominical Oracles em cinco volumes. Era Papia realmente um discípulo de João como afirma o prólogo? Irineu que conhecia as obras de Papia em sua forma original (e nós não a conhecemos como ele na época), e que se utilizou dos textos, afirma que, de fato, Papia era discípulo de João. Eusébio também o confirmava, ainda que não admirasse a inteligência de Papia e não gostasse de seus pontos de vistas escatológicos.
Como Papia (70-150) era contemporâneo de Policarpo, não existe problema cronológico nesta declaração, e deveríamos aceitá-la como verdade. Será que Papia agiu sob as ordens de João como um amanuense? É possível, mas mais provável é que o prólogo esteja baseado num mal entendimento de Papia, que disse, na realidade, que “eles” (isto é, o círculo íntimo dos discípulos de João) escreveram o evangelho de João sob a instrução deste, e não que Papia tivesse escrito sozinho. Mas, e as referências a Marcião? Foi ele contemporâneo de João? Mesmo que distinguíssemos dois João neste período residentes em Éfeso, João o apóstolo e João o presbítero, e supondo que este último fosse o motivo do prólogo (que acredito não seja), pode-se datar a atividade herética de Marcião na época de João, o presbítero? [6] Creio que não. É mais provável que esta declaração do prólogo seja fruto de uma leitura mal feita de Papia, e devemos inferir de que não foi João, mas o próprio Papia que denunciou Marcião quando o heresiarca chegou a Hierápolis vindo da província de Ponto. (Em vários lugares temos registros [7] de que, quando Marcião perguntou a Policarpo de Esmirna se o reconhecia, Policarpo teria respondido: “Sim, reconheço o primogênito de Satã!”). Concluímos, portanto, que o escritor ou um dos copistas de nosso prólogo era uma pessoa ignorante, mas é melhor enxergar pela ótica errada de um ignorante, do que visualizar a forma original de uma declaração que foi corrigida, por um homem inteligente que quer que se concorde com o que ele pensa ser a verdade. Certamente que todo esforço foi feito para mostrar como Marcião e suas obras foram repudiadas pelas autoridades respeitáveis da época.
Texto muratoriano
Outro resultado da reação anti-Marcião, não tão anti-Marcião como estes prólogos aos evangelhos, é uma lista dos livros do Novo Testamento que possivelmente represente o cânone aceito em Roma no fim do segundo século. Esta lista foi encontrada em 1740 pelo antiquário L. A. Muratori, e é chamado de cânone Muratoriano. É um texto em latim, mas o texto original era em grego. Está mutilado no começo, mas como as partes seguintes chamam Lucas de terceiro evangelho, não é difícil assegurar que Mateus e Marcos foram originalmente chamados de primeiro e segundo evangelhos. Abaixo uma tradução da parte que pôde ser lida:
“… O terceiro livro dos evangelhos, conforme Lucas, foi escrito em ordem por Lucas o médico, em seu próprio nome logo depois da ascensão de Cristo, quando Paulo o levou consigo como discípulo e companheiro de viagem: Ele (Lucas) nunca viu nosso Senhor na carne. Lucas, então, até onde pôde traçar o curso dos acontecimentos, começa sua narrativa do nascimento de João Batista”.
O quarto evangelho é o de João, um dos discípulos. Quando os discípulos de João e os bispos lhe solicitaram que escrevesse, ele disse: “Jejuem comigo durante três dias, começando hoje, e o que for revelado a qualquer um, será compartilhado uns com os outros”. Na mesma noite André, um dos apóstolos teve uma revelação de que João deveria se dedicar a escrever a história, e eles juntos fariam a revisão. E assim, mesmo que os vários evangelhos tenham começos diferentes, feitos por eles, diferença alguma faz para a fé dos cristãos, porque o mesmo Espírito controlador estava com eles durante toda a história do nascimento do Senhor, sua paixão, ressurreição, sua conversa com os discípulos e seus dois adventos – o primeiro humilde e sem honra, que é sua primeira vinda; o segundo em poder real e em glória, sua segunda vinda. O que os maravilhou é que João em suas epístolas fala de suas experiências, uma a uma, dizendo: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida” (1 Jo 1.1 e ss.). Porque nessas palavras João não se apresenta apenas como um espectador e ouvinte, mas como escritor de todas as maravilhosas obras pela ordem.”
Então, os Atos de todos os apóstolos foram escritos em um livro. Lucas fala ao “excelentíssimo Teófilo” de que os vários acontecimentos tiveram lugar em sua presença, e de fato ele omite a morte de Pedro, bem como a viagem de Paulo quando este saiu de Roma em direitura da Espanha.
Agora, as epístolas escritas por Paulo por si mesmas relatam a quem quiser onde eles estavam, para onde foram enviados e por que. Em primeiro lugar proíbe aos coríntios de se envolverem em divisões e heresias; aos gálatas proíbe a circuncisão, mas aos romanos escreveu demoradamente a respeito da sequência das escrituras, destacando que Cristo era o tema principal. Não sem faz necessário que examinemos os detalhes, já que o abençoado Paulo, ele mesmo, seguindo o plano de João, apóstolo antes dele, escreveu nominalmente para sete igrejas na seguinte ordem: (1) Aos corintos, (2) aos efésios; (3) aos filipenses; (4) aos colossenses; (5) aos gálatas; (6) aos tessalonicenses e (7) aos romanos. (Aos coríntios e aos tessalonicenses, de fato, ele escreveu em duas partes, só pelo fato de alguém querer contradizer). E a igreja espalhada pelo mundo é reconhecidamente uma, pois João, no Apocalipse, mesmo escrevendo às sete igrejas, fala, de fato, para todas elas.
Além disso, uma epístola (de Paulo) foi escrita a Filemom, uma para Tito e duas para Timóteo, de boa-vontade e como amizade, para honra da igreja católica, a fim de pôr em ordem os procedimentos eclesiásticos. Existe também uma possível epístola enviada aos de Laodicéia e outra aos alexandrinos – ambas em nome de Paulo conforme a heresia de Marcião, e muitas outras que não podem ser admitidas na igreja católica, pois não se pode misturar veneno com mel”.
Uma epístola de Judas e duas já mencionadas escritas por João estão incluídas na lista católica, e também o livro de Sabedoria escrito pelos amigos de Salomão em sua memória. [8] Chegaram até nós o apenas o Apocalipse de João e as cartas de Pedro, mas alguns recusavam a ler estas últimas na igreja.
Quanto ao Pastor este foi recentemente escrito na cidade de Roma por Hermas, durante o tempo em que seu irmão Pio era bispo da cidade de Roma. E, portanto, deveria ser lido, mas não deve ser publicado às pessoas da igreja juntamente com os profetas, cujo número é completo, ou com os apóstolos dos últimos dias. Mas os escritos de Arsinoite Valentino e seus associados não são admitidos de forma alguma. Escreveram um novo livro de Salmos para Marcião juntamente com Basilides e o asiático fundador de uma seita na Frigia”. 
As informações miscelâneas referidas nesta lista sobre a origem individual dos livros do Novo Testamento não têm valor algum; suas declarações a respeito dos evangelhos, por exemplo, merecem menos considerações que aquelas do prólogo anti-Marcião. O valor do documento está na declaração de que vários livros foram reconhecidos como canônicos na igreja de Roma no final do segundo século. – Os quatro evangelhos, Atos, as treze epístolas de Paulo, juntamente com a epístola de Judas, duas epístolas de João (possivelmente) a segunda e a terceira eram reconhecidas como sendo uma apenas; e o Apocalipse de João. E foi incluído um segundo Apocalipse atribuído a Pedro. Conhecemos este livro. Outros escritores cristãos relatam que era lido nas igrejas, e o retrato lúrido dos tormentos dos que são condenados permeiam a imagem medieval do tema, como aquelas do Inferno de Dante. O que surpreende é que não há menção da primeira epístola de Pedro no cânone romano. Zahn achava que a referência ao Apocalipse de Pedro era uma corruptela das epístolas de Pedro. Ele sugeriu que as palavras em itálico caíssem fora, como segue: “O Apocalipse de João e a epístola de Pedro. Existe outra epístola de Pedro, que algumas pessoas recusam a ler nas igrejas”. [9] Mas aqui o texto dos fragmentos não precisa de emendas, e parece que 1 Pedro foi deixado de lado acidentalmente por algum escriba. O Pastor de Hermas que já mencionamos, recomenda sua leitura com o propósito de devoção e edificação, mas não foi incluído entre os escritos canônicos – os dos apóstolos e profetas. (Existe a idéia de que, se a lista dos escritos proféticos não tivesse sido encerrada, o Pastor se encaixaria no cânone dos escritos apostólicos). Os escritos de Marcião e os livros gnósticos foram banidos juntamente.
Em resumo, temos aqui o reconhecimento de praticamente o mesmo Novo Testamento que usamos. A omissão da epístola aos Hebreus é digna de nota, porque Clemente já a conhecia um século antes; provavelmente a igreja de Roma no final do segundo século sabia que não se tratava da obra de um apóstolo. Tiago e 2 Pedro também foram perdidos.
Irineu, cujos escritos são contemporâneos da lista Muratoriana, apresenta a mesma lista. As evidências de Irineu são importantes por causa de seus contatos universais: Ele passou a juventude na Ásia Menor e a idade adulta em Gaul, e estava em contato sempre com a igreja de Roma. Além de reconhecer os quatro evangelhos, ele confirma a canonicidade de Atos, das epístolas paulinas (exceção de Filemon, que ele não teve oportunidade de mencionar), de 1 Pedro, 1 João e Apocalipse. Ele menciona o Pastor de Hermas como “escritura”, mas não o inclui na lista dos escritos apostólicos.
Orígenes de Alexandria, e mais tarde de Cesaréia, escrevendo lá por 230 nomeia  esses mesmos livros (incluindo Filemon) como de canonicidade reconhecida, e acrescenta que Hebreus, 2 Pedro, e 2 e 3 João, Tiago e Judas, com a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas, a Didaquê e o Evangelho segundo Hebreus eram disputados como epistolares. (A Epístola de Barnabé era um tratado escrito entre os anos 70 e 135 provando que os judeus confundiram o sentido real dos cerimoniais do Antigo Testamento ao interpretá-los literalmente. O Evangelho segundo Hebreus prece ter sido uma variação do evangelho de Mateus usado por alguns grupos de judeus cristãos). Basicamente à época de Orígenes já havia um consenso sobre a maioria dos livros do Novo Testamento; havia uma pequena margem de dúvida sobre alguns; alguns foram canonizados enquanto outros perderam confiabilidade e aceitação.
No começo do quarto século, Eusébio de Cesaréia menciona todos os livros de nosso Novo Testamento como universalmente aceitos nas igrejas, com exceção de cinco (Tiago, Judas, 2 Pedro, 2 e 3 João), que, mesmo reconhecidos pela maioria, eram aceitos por outros (provavelmente as igrejas siríacas). Mais adiante no quarto século encontramos a nossa lista de vinte e sete livros citados por Atanásio de Alexandria (367), por Jerônimo e Agostinho no Ocidente.
O cânone não é fruto de uma decisão de sínodo ou concílio
Deve ficar claro, portanto, que nosso Novo Testamento de vinte e sete livros não é fruto de uma escolha arbitrária feita por algum sínodo ou grupos que, ao redor de uma mesa, com um montão de documentos, disseram: “Agora vamos decidir quais destes devem ser descartados por não terem autoridade apostólica”. Somente depois que os vinte e sete livros eram totalmente aceitos pelos cristãos ao redor do mundo é que eles foram objeto de um decreto de um concílio eclesiástico – o sínodo do Norte da África de 393 [10] (cujas descobertas foram confirmadas pelo sínodo de Cartago quatro anos mais tarde). E, quando finalmente um concílio da igreja deu a decisão final sobre o tema, tudo o que fez foi ratificar o consenso universal dos cristãos que (e todos assim cremos) foram guiados a essa decisão por uma sabedoria maior que a que possuíam. (Sabedoria do Espírito Santo, NT). A formação do cânone não foi uma decisão baseada em pesquisas, mas o reconhecimento de que eram livros aceitos em todo o mundo cristão da época.
A canonicidade implica em suprema autoridade nas questões de fé. Ao incluir um documento no cânone os antigos cristãos afirmavam que o livro poderia ser usado no estabelecimento da doutrina, seja em debates com a própria igreja de Roma ou em disputas com os hereges. Mas, tais livros foram incluídos no cânone porque os cristãos reconheciam sua autoridade. Os livros não adquiriram autoridade ao serem incluídos no cânone. Um dos critérios principais (e não é o único), para o reconhecimento da autoridade e da qualidade canônica de uma obra era sua autoria apostólica. Isso é tão verdadeiro que vários grupos querendo trazer sua própria linha doutrinária chamavam seus escritos de Evangelhos ou livro de Atos, ou epístolas, e até mesmo Apocalipse e colocavam nele o nome de um apóstolo. Por isso apareceu uma obra intitulada o Evangelho de Pedro com pontos de vista dos docetistas que era lido inocentemente por uma igreja siríaca no final do segundo século, até que o bispo de Antioquia, Serapião ouviu falar sobre isso e proibiu seu uso.
É fato que vários livros eram comumente lidos na igreja sem serem formalmente canonizados. Afinal, não havia muitas cópias, e se o livro era para edificação, a hora mais conveniente de edificar os irmãos era durante as reuniões da igreja. Podemos comparar o que afirma o documento Muratoriano sobre o Pastor de Hermas. Alguns dos manuscritos mais importantes da Bíblia grega incluem no final, alguns dos livros que podem ser lidos pela igreja. O Código Sinaítico contém a Epístola de Barnabé e parte do Pastor; o código alexandrino contém as cartas de Clemente de Roma e uma antiga homilia comumente e erroneamente chamada de Segunda Epístola de Clemente. [11]
 Existiu também um livro herético de Atos chamado de Atos de João produzido na metade do segundo século por Leukios, escritor que apresenta o apóstolo João como um gnóstico, um mestre, e continha também um hino gnóstico interessante no qual Jesus acompanha seus seguidores, apresentando-se com danças. Este hino (que Gustav Holst) colocou uma música contém uma letra perfeita e ortodoxa, muito semelhante ao evangelho canônico de João:
Para quem contempla, uma lâmpada eu sou;
Tu que me conheces, espelho sou;
Tu que bates, uma porta sou;
O caminho por onde segues.
Outro livro apócrifo Atos de Paulo não era tanto uma composição herética, mas uma obra de ficção histórica escrito por um presbítero da Ásia e influenciado por seu menos imaginativo irmão, para quem “uma novela era uma mentira”. Ele se defendia de que escrevera por amor a Paulo, o que pode ser verdadeiro, mas devido a isso foi afastado do presbitério. Mesmo sendo uma obra de ficção jorra muita luz sobre o cristianismo na Ásia Menor no segundo século e preserva um retrato de Paulo que o descreve como uma pessoa de boa aparência.
Outro problema no que diz respeito à separação entre a literatura canônica e as demais surgiu durante a última perseguição imperial. Como dissemos, durante as perseguições os soldados romanos vasculhavam as casas dos cristãos na tentativa de destruir os livros sagrados. Então, quando a polícia chegava numa igreja e exigia que os textos bíblicos fossem entregues, os cristãos eram obrigados a entregar o que possuíam. Um bom cristão deveria defender os escritos sagrados com a própria vida. Mas, a igreja podia ter outros livros que não faziam parte dos textos sagrados – Pastor de Hermas, por exemplo, ou um tratado da ordem interna da igreja. A polícia não sabia distinguir o que era do cânone ou não, e ficava satisfeita quando lhes entregavam qualquer literatura. Não seria bem melhor salvar os livros sagrados? Alguém poderá discutir se eles erravam ou não, fazendo isso. Claro, a questão não ajudava a fixar os limites canônicos, e por este tempo (303 d.C.), os livros sagrados já estavam definidos.
Marcião. [12]

O historiador Philip Schaff afirma que Marcião era o cara mais honesto, prático e perigoso entre os gnósticos; cheio de energia e zelo pela reforma, incansável e excêntrico. Filho do bispo Sinope, de Ponto, converteu-se, doou suas propriedades para a igreja, mas foi excomungado por seu próprio pai, talvez por pregar heresias e o desprezo a autoridade. O zelo por um cristianismo puro levou-o a heresias. Ele foi a Roma ao redor do ano 140 para discutir com os bispos suas idéias.
1. Ele somente via diferenças superficiais nas escrituras, e não via a harmonia profunda.
2. Ele não valorizava a história e colocava o cristianismo em conflito com as revelações de Deus. Deus havia abandonado o mundo por milhares de anos até reaparecer em Cristo.
3. Ele escreveu um resumo do evangelho de Lucas e das epístolas de Paulo, bem como uma obra contradizendo o antigo e o novo testamento.
Irineu relata que quando Marcião se encontrou com Policarpo de Smirna lhe perguntou: Você sabe quem eu sou? Policarpo teria respondido: Sei sim, você é o primogênito de Satanás.
4. Marcião pregava sobre duas ou três forças principais: A força de um Deus bondoso; que Cristo mostrou ao mundo; as forças do mal, governadas pelo Maligno, e o criador do mundo, que é finito, imperfeito, e irado Deus dos judeus. (Daqui vem a teologia relacional).
5. Rejeitava todos os livros do AT e usava o texto de Mateus 5.17 como justificativa: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”.
6. Ele acreditava que o cristianismo não tinha ligação com o passado, e que havia surgido abruptamente dos céus. Cristo não era nascido, mas desceu repentinamente na cidade de Cafarnaum no décimo quinto ano de Tibério. E apareceu como alguém que veio manifestar a Deus que o enviou. Jesus nada tem a ver com o Messias anunciado no AT; sua morte era uma ilusão, ainda que tivesse um sentido real. Esta a idéia do docetismo. Deus teria chamado a Paulo para pregar esta “verdade”.
7. Marcião formou seu próprio Canon do NT que consistia de 11 livros, uma compilação mutilada do livro de Lucas e dez epístolas de Paulo. Ele colocava por ordem de escritos Gálatas, chamava Efésios de epístola aos Laodicences; rejeitava as epístolas pastorais, a epístola aos hebreus, Mateus, Marco, João e Atos, as epístolas universais e o Apocalipse.
Ele retirou do evangelho de Lucas o nascimento e o ministério de João Batista.
Teria cortado os capítulos 15 e 16 de Romanos, e os incorporado ao livro de Éfeso.
8. Pregava e praticava o ascetismo, como disciplina pessoal, não aceitava que se participassem de festas pagãs, e era contra o casamento, o comer carne e beber vinho. Só aceitava batizar casados desde que estes se abstivessem de toda relação sexual.
9. Eliminou o vinho da ceia, e manteve apenas o pão, o b atismo em águas, a unção com óleo e uma mistura de leite e mel que era dado aos recém-batizados. Marcião realizava o batismo vicário (pelos mortos).
10. O posicionamento de Marcião fez a igreja acelerar o cânone dos livros do NT.



[1] W. C. van Unnik, em The Jung Codex. Editora F. L. Cross, 1955, p 124
[2] Texto dos escritos de Hipolito, Heresias, VII, 18
[3] Veja Marcos 14.51 e ss. cf. J. A. Robertson, The Ridden Romance of the New Testament (1920), p 35, Relatos mais extravagantes afirmam que ele teria amputado seu dedo para desqualificar-se para o service sacerdotal.
[4] Nossa evidência não se baseia no texto original de Marcos 16.8 (os vv. 9-20 parecem vir de outra fonte), mas se o evangelho realmente termina no capítulo 16.8 ou o final teria sido perdido ao longo dos anos.
[5] Isto é, profetas menores, uma referência a Malaquias 3.1
[6] O prólogo anti marcionita de Lucas identifica a João, o evangelista, como sendo o apóstolo.
[7] Irineu, Contra Heresias, III, 3.4
[8] É surpreendente ver o livro de Sabedoria, dos apócrifos do AT mencionado aqui. Pelo que se sabe, pertence ao período do NT e não do Antigo Testamento. O Teólogo Zahn acreditava que o título original dizia: “A Sabedoria de Salomão, escrito em sua honjra por Filo” (O filósofo judeu de Alexandria, cerca de 20 a. C. a 50 d. C). O comentarista do século XV Hugh de St. Victor conhecia algumas pessoas que afirmavam que este livro fora escrito por Filo. O teólogo Mgr. R. A. Knox afirmou a este escritor que estava escrevendo uma tese de que os escritos eram de Paulo antes de se converter!
[9] Teólogo Zahn, Geschichte des neutestamentlichen Kanons, II, 1890, p. 142
[10] A igreja da qual Agostinho se tornou bispo em 395.
[11] Originalmente continha também a coleção de hinos judeus do primeiro século a. C., conhecidos como Salmos de Salomão.
[12] N.T. Esta parte sobre Marcião foi acrescentada por este tradutor e historiador como um anexo extraído de Church History de Philip Schaff.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Profetas e montanistas

Traduzido por João A. de Souza Filho,
do livro The Spreading Flame, de F. F. Bruce,
Capítulo 21. Editora Eerdmans, 1985

Dois grandes movimentos se destacam entre aqueles que se desviaram do curso do cristianismo no segundo século: O gnosticismo e o montanismo. Os gnósticos se concentraram exageradamente na parte intelectual do cristianismo, enquanto os montanistas exageradamente na parte inspiracional da fé. Não trataremos aqui do movimento dos gnósticos, que será visto à parte, e nos deteremos na significância do montanismo. Diferentemente dos gnósticos, a maioria dos montanistas não se apartou dos ensinamentos dos apóstolos de Cristo. Para entendermos o movimento profético é preciso rever o papel que os profetas tinham na igreja primitiva.
No tempo dos apóstolos os profetas eram tidos como figuras importantes na vida da igreja.
(Nota do tradutor: Faço aqui neste parágrafo um retrospecto a atuação dos profetas no livro dos Atos dos Apóstolos mencionado pelo autor à p 92 de seu livro):
Nos primeiros anos da igreja os profetas são mencionados com frequência na comunidade dos cristãos. Eram acreditados e reconhecidos quando se levantavam nas reuniões, e, inspirados e tomados pelo Espírito Santo proferiam palavras cheias de poder. Depois tais manifestações foram diminuindo, em parte porque muitas igrejas começaram a suspeitar de que nem todos que se diziam profetas eram genuínos e também, em parte, porque o crescimento organizacional da igreja não deixava espaço para que os profetas se manifestassem. Na realidade, um terceiro fator surgiu: A diminuição do número dos profetas.
Encontramos um bom número deles nos primeiros anos da igreja, e, de fato, tais manifestações sobrenaturais não encontram paralelos no cenário dos grandes movimentos religiosos. [1]
Um desses profetas, Ágabo que vivia em Jerusalém, de repente declarou numa reunião da igreja em Antioquia que uma grande fome viria sobre a terra. De fato, sabemos pelo historiador romano Suetônio que o reinado do imperador Cláudio (41-54) foi marcado por sucessivas estiagens e perda de colheitas, e quanto a situação na Palestina, Josefo relata que a região sofreu com a fome cerca de 46 d.C. e que a rainha mãe, uma judia do reino de Adiabene, região que ficava junto ao rio Tigre trouxe grãos do Egito e figos de Chipre para aliviar a fome dos judeus na Palestina. Foi neste tempo que os irmãos da igreja de Antioquia levantaram recursos para seus irmãos da Judeia em resposta às profecias de Ágabo, que Paulo e Barnabé levaram para a igreja de Jerusalém.
Esses profetas aparecem no livro de Atos ao lado dos mestres, e as palavras deles eram bem aceitas. Nas cartas de Paulo os profetas são incluídos nos ministérios divinamente concedidos a igreja e são tidos como importantes, destacados logo depois dos apóstolos (1 Co 12.28). Jesus, ao ascender aos céus deu esses ministérios ao seu povo: “ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres” (Ef 4.11).
No Didaque, logo no começo do segundo século os profetas ainda ocupavam lugar de proeminência e honra na igreja, e surgiu, a partir daí a necessidade de se diferenciar os verdadeiros dos falsos profetas. Os testes para identificá-los são bem práticos.
Permita que os profetas distribuam a (eucaristia) ações de graças como queiram fazê-lo”. [2]
E continua a recomendação:
No que diz respeito aos apóstolos e profetas, vocês devem agir da seguinte maneira, conforme estabelecido nas ordenanças dos evangelhos. Que cada apóstolo que visitar vocês sejam recebidos como o próprio Senhor; mas não devem permanecer mais que um dia ou, por (necessidade), se ele permanecer três dias será considerado falso. E ao partir, o apóstolo não deve receber nada além de comida até que encontre um abrigo, e, se ele pedir dinheiro, considerem-no um falso profeta”. [3]
Parece um teste bem simples, mas o assunto é mais complicado do que se imagina.
Mas, vocês não devem testar ou julgar qualquer profeta que fala no Espírito, porque todos os pecados são perdoados, menos este. Contudo, nem todo o que fala no Espírito é um profeta, a menos que ande nos caminhos do Senhor. É pelo estilo de vida que os verdadeiros serão diferenciados dos falsos. E nenhum profeta que no Espírito ordene que seja posta a mesa do Senhor dela deve comer. Todo profeta comprovado e verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, mas que não ensina a fazer como ele faz não deverá ser julgado por você; ele será julgado por Deus. Assim fizeram também os antigos profetas. Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue[4]
O tema parece um tanto confuso, mas a ideia em vista está bastante clara. Uma pessoa que negocia seus dons de profecia não pode ser recebida. No entanto, deve-se ter muito cuidado ao testar os que vêm como profetas, porque duvidar de um verdadeiro profeta é pecar contra o Espírito Santo através do qual ele fala. E se um profeta verdadeiro decide fixar-se numa comunidade cristã, esta deve ser congratulada. Um irmão que viaja deve estar preparado para obter seu sustento através de sua profissão enquanto está residindo na cidade da igreja que ele freqüenta. Porém, um profeta merece honra por seu posto e pela virtude de seu ministério profético.
Acolha todo aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita. Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário. Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar. Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio. Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente![5]
“Todo verdadeiro profeta que quiser se fixar em seu meio é digno de alimento. Assim também o verdadeiro mestre é digno do seu alimento, como qualquer operário. Portanto, tome os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os dê aos profetas, pois são eles os seus sumos-sacerdotes. Porém, se você não tiver profetas, dê aos pobres. Se você fizer pão, tome os primeiros e os dê conforme o preceito. Da mesma maneira, ao abrir um recipiente de vinho ou óleo, tome a primeira parte e a dê aos profetas. Tome uma parte de seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, conforme lhe parecer oportuno, e os dê de acordo com o preceito. [6]
Aqui o profeta deve ser tratado mais ou menos como o levita do livro de Deuteronômio [7] e a comunidade que persuadir um profeta a se estabelecer em seu meio deve se sentir como Mica no livro de Juízes, que disse: “Sei, agora, que o SENHOR me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote” (Jz 17.13).
E uma igreja não podia ficar esperando que a palavra de um profeta residente se cumprisse; tal pessoa deveria ter um ministério normal, profético ou não.
Escolha bispos e diáconos (ou superintendentes e ministros) dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres. Não os despreze porque eles têm a mesma dignidade que os profetas e os mestres.[8]
O Didaque, na verdade tenta manter o equilíbrio entre a autoridade dos líderes da igreja local (bispos e diáconos) e a autoridade exercida por profetas que não estavam ligados a nenhuma igreja local, e sobre quem não era fácil manter um efetivo controle. Em qualquer igreja local sempre haveria pessoas que achavam os profetas visitantes inspiradores, em contraste com os anciãos sérios, a quem deviam ouvir todos os dias. E se as injunções dos profetas viessem de encontro com os líderes locais, a autoridade e prestígio dos anciãos poderiam ser minadas. Era fácil, para os profetas que não tinham responsabilidade local dizer às pessoas o curso que deveriam seguir, mas os líderes locais tinham a responsabilidade de guiar os assuntos do rebanho e assumir as conseqüências de quaisquer erros que cometessem. Por isso foi necessário escrever algumas regras para controlar a atividade profética, sem que incorressem no risco de “extinguir o Espírito”, cf. 1 Tessalonicenses 5.19.
Existe, de fato, uma inevitável tensão entre as formas ordenadas de um ministério regular e aqueles ministérios cuja forma é imprevista e entusiástica. É normal que pessoas que apreciam uma forma não conseguem entender a outra. Quando um membro do Exército da Salvação – assim contam a história – freqüentava um culto numa igreja Anglicana e ouvia um sermão evangélico que ele gostava, se expressava alegremente com “Glória a Deus! Aleluia”, e logo em seguida um irmão da igreja batia em seu ombro e lhe admoestava, “desculpe-me, Senhor, mas não fazemos isto em nossa igreja”. Mais diretamente agiu o Bispo Butler ao repreender João Wesley quando este visitou a Diocese de Bristol: “Querer imitar as revelações extraordinárias do Espírito Santo é uma coisa horrível, horrível coisa”. Os líderes locais são responsáveis para que haja um fluir da vida da igreja “com decência e ordem”, e, portanto não gostarão de serem perturbados por “apóstolos” invasores, especialmente os tipos meteoros que hoje estão aqui e amanhã se vão. O profeta visitante, por outro lado critica as regras estabelecidas pelo bispo como se este estivesse apagando o Espírito. Cada lado tem seus simpatizantes, e a tensão pode gerar divisão, a menos que a graça de Deus invada a todos.
Talvez seja isto o que acontecera na igreja de Corinto lá pelo ano 95 quando surgiram problemas e os presbíteros/bispos foram depostos e a igreja romana escreveu pela pena de Clemente reclamando do comportamento inconstitucional dos corintos.
A insistência de Inácio trouxe para a igreja a supremacia de um único bispo, praticamente eliminando o ministério do dom profético. A Didaque dava total liberdade a que um profeta celebrasse a eucaristia, mas Inácio insistia que esta só era válida quando celebrada por um bispo ou seu auxiliar. É até possível que Inácio, homem de firmeza de caráter e que possuía em seu ministério um forte sentido profético se preocupasse, acima de tudo com a ortodoxia. Quando se concede ao profeta a liberdade de falar de improviso, não existe garantia de que ele não traga alguma heresia. Um bispo, por outro lado, é o guardião da ortodoxia. A garantia de se conceder liberdade total poderia trazer algum risco. Era comum Inácio “gritar no Espírito”, quando visitou a igreja de Filadélfia, afirmando: “Nada façam sem seu bispo!” [9] Mas, outras declarações dele nem sempre eram bem polidas.
Algo semelhante ao gênio profético aparece ao mesmo tempo no Pastor, de Hermas, e talvez esteja aí a popularidade dessa obra em contraste com outros campeões da fé daquele tempo. Hermas, à semelhança do Didaque estabelece alguns testes para os profetas, e o fato dele fazê-lo sugere que em seus dias, nas primeiras décadas do segundo século a enunciação profética não havia de todo desaparecido da igreja de Roma. O teste estabelecido por Hermas é bem evangélico, pois afirmava que um homem inspirado pelo Espírito de Deus dará provas de que é de Deus pelo estilo de vida e caráter. Uma pessoa ambiciosa, que se auto-proclama, tagarela ou mercenária mostra que o espírito procede de diferentes fontes.
Quando um homem que tem o Espírito divino entra numa sinagoga de homens justos, que têm fé no Espírito divino, e são homens intercessores, então, o anjo do Espírito profético, que está em contato com ele, enche tal homem e este, cheio do Espírito de Deus, fala à congregação conforme Deus quer”. [10] 
Mas, estas manifestações proféticas depois da era apostólica deram espaço para que surgisse o movimento montanista que se espalhou da cidade de Frigia para todo o mundo cristão.
A Ásia Menor fora marcada por entusiásticas formas de religião, especialmente o culto a Cibele, a Grande Mãe dos Deuses. Talvez, em parte por causa disto foi que uma variedade nova de atividades cristãs aparecesse no ano 156 nos altiplanos da Frigia que contaminou o elemento profético. O líder do novo movimento, Montano, de onde procede o nome do montanismo ensinava que, como a dispensação do Pai dera lugar à manifestação do filho quando Cristo veio a terra, também agora a dispensação do Filho dera lugar à dispensação do Espírito. Pois a promessa de Cristo de que enviaria o Paracleto se cumprira, e ele, Montano era o porta-voz do Paracleto. A vinda do Paracleto era o prelúdio do segundo advento de Cristo e o estabelecimento da Nova Jerusalém numa das cidades da Frigia.
Se citarmos a descrição que Hort faz do montanismo, veremos manifestações que sempre ocorrem na história do cristianismo, quando o novo vinho de um movimento espiritual se torna muito poderoso para ser contido nos velhos odres, agora rígidos demais pele excesso da organização.
Rapidamente, as características desse movimento foram: Primeiro, uma fé firme no Espírito Santo como o Paracleto prometido, apresentado como poder do céu para a igreja nos dias de hoje. Segundo. A crença de que o Espírito Santo se manifestou de maneira sobrenatural naqueles dias através de profetas e profetizas. Terceiro, a preocupação em inculcar o modelo cristão de moralidade, disciplina e o fortalecimento do ensinamento desses profetas. Um aumento no número de igrejas contribuiu também para um aumento de regras e exigências e um rigoroso sistema de proibições. A essas três características do montanismo podem-se acrescentar outras duas: Quarto, a tendência de jogar os profetas contra os bispos. A nova organização episcopal que incluía todos os cristãos numa só comunhão e que os montanistas viam nisso um grave perigo, e quinto, um anelo da segunda volta de Cristo com a conseqüente indiferença aos assuntos terreais.[11]
A função de mulheres no ministério profético, apesar dos precedentes no Antigo e Novo Testamentos sempre trouxeram muitos problemas ao governo da igreja. Elas são mais difíceis de serem controladas do que os profetas homens. Duas mulheres, Priscila e Maximiliana que abandonaram os laços familiares para seguir a Montano e que agiam como profetizas de um novo tempo, eram acusadas pelos bispos locais de estarem possessas por demônios, mas, os bispos nunca conseguiram expulsar os demônios delas.
Entre as novas revelações que elas apresentavam havia sérias medidas restritivas e proibições aos seus seguidores, em assuntos como, jejuns e casamento. Parece que no começo houve uma tentativa de renunciar totalmente ao casamento, mas, mais tarde o que distinguiu os montanistas foi o ensinamento de que não deveriam entrar num segundo casamento, não apenas para os ministros da igreja, mas para todos os membros da coletividade profética. Um dos destaques do montanismo era o rigor e o entusiasmo de buscar o martírio.
Muitos aspectos do movimento atraiam todo tipo de pessoas. Os confessores na perseguição de Viena e Lyon no ano 177 escreveram admoestando os irmãos na Ásia menor e o bispo de Roma para que não apagassem o Espírito ao agir tão rigorosamente contra os montanistas. No final do segundo século o movimento alcançou as províncias do norte da África e lá houve a conversão do ilustre Tertuliano o teólogo jurista de Cartago. Um mestre dominicano certa vez conversou com este escritor e afirmou que era incompreensível como uma pessoa tão ilustre e inteligente desse espaço ao montanismo.
Este é um ponto de vista, mas, pode-se dizer que deveria haver algo sólido no montanismo do que se supõe, já que conseguia atrair pessoas cultas como Tertuliano. Sem dúvida, ao se espalhar por outras nações, perdeu algumas daquelas extravagâncias que eram as características do movimento na Frigia. Talvez o puritanismo tenha atraído Tertuliano. De fato, ele demonstra sinais da influência do montanismo em seus escritos durante anos até que finalmente rompeu com a comunhão católica e se entregou completamente aos “homens do Espírito”, como eram chamados. O montanismo sobreviveu no seu nascedouro, na Frigia até o século sexto quando foi esmagado pelo imperador Justino (527-565).
Um dos subprodutos do movimento montanista levou as pessoas a suspeitarem da literatura de João, no Novo Testamento, a qual os montanistas constantemente se referiam. A doutrina da Segunda Vinda era baseada numa interpretação literal do milênio apresentado no livro de Apocalipse (Ap 20.1-7), e havia aqueles que não conseguiam rejeitar a doutrina dos montanistas sem rejeitar também o livro de Apocalipse. Um dos que rejeitavam o livro de Apocalipse era um presbítero, chamado Gaio, autor de Diálogo no qual fazia um debate com Proclus líder dos montanistas naqueles dias (cerca de 200 d.C). Parece que Gaio atribuía a autoria do livro de Apocalipse a Cerinto, um herético que surgiu no final do primeiro século. Mas, ao que parece Gaio também rejeitava a autoridade do quarto evangelho, o livro de onde os montanistas tiravam a doutrina do Paracleto.
Esta informação procede de dois escritores siríacos de onde coletamos a informação que Hipólito defendia a autoria de João tanto do quarto evangelho como do livro de Apocalipse em seu tratado Defesa contra Gaio.
  
























[1] Este dom profético era semelhante, mas não igual ao dom de línguas. Ele sobreviveu nas igrejas da Síria até o final do primeiro século, quando o tratado conhecido como Didaque mostram as tentativas de barrar e controlar os profetas. Foi restaurado no segundo século na Ásia Menor entre os Montanistas e manifestações semelhantes são vistas em vários períodos da história da igreja.
[2] Didaque 10.7
[3] Didaque 11.3-6: Os termos apóstolos e profetas aparecem intercambiados.
[4] Didaque 11. 7-12.
[5] Didaque 12.1-5
[6] Didaque 13.1-7
[7] Dt 18.6 e ss. 26.12 e ss. Outro ponto de concordância entre esta passagem da Didaque e Deuteronômio reside na orientação de se testar o profeta. Em Dt um homem é um falso profeta quando (a) suas predições não se cumprem (18.22); (b) se ele seduz as pessoas a lhe seguirem e não ao verdadeiro Deus, mesmo que suas predições tenham se cumprido (13.1 e ss.).
[8] Didaque 15.1-2
[9] Inácio, Epístola aos de Filadélfia 7.2
[10] Hermas, Pastor, Mandate XI, 9
[11] F. J. A. Hort, The Ante-Nicene Fathers (1895), pp 100 e ss.