Marcião, suas heresias e a finalização do cânone sagrado
(A seguir, a tradução do capítulo XXIII do livro The
Spreading Flame, de F. F. Bruce).
Tradução de João
A. de Souza Filho
Traduzido em
março de 2016
Lá pelo ano 140 d.C. a igreja em Roma recebeu a visita
de um homem chamado Marcião, natural da Ásia Menor que por este tempo se
engajara em controvérsias doutrinárias com alguns dos líderes de sua região.
Expôs seus pensamentos aos presbíteros de Roma, e quando o que ele expôs se
tornou inaceitável aos presbíteros, ele se afastou da comunhão com eles e
começou sua própria igreja.
Falaremos um pouco mais sobre este homem adiante
(ver p 251).
Destacamos aqui que Marcião repudiava totalmente a
autoridade do Antigo Testamento, e também não aceitava a autoridade dos
apóstolos de Jesus, a não ser Paulo. Ele afirmava que os demais apóstolos e
seus discípulos haviam corrompido o ensinamento de Jesus, misturando-o com as
crenças judaicas. Na realidade ele cria que o próprio Jesus, longe de aceitar a
autoridade do Antigo Testamento veio para liberar as pessoas da escravidão do Deus
do AT, revelando-lhes um Deus superior, bondoso e misericordioso, a quem Jesus
chamava de Pai e que esta verdade teria ficado obscurecida nos registros dos
evangelhos por corrupções judaizantes. Os escritos de Paulo, o único dos
apóstolos que não se apostatou dos ensinamentos de Jesus, também sofreu a
influência dos judaizantes, e precisavam, portanto, do discernimento e do
escrutínio de Marcião para que fossem restaurados ao seu texto verdadeiro e
original. Na realidade, Marcião compilou um cânone das escrituras para
substituir o cânone do Antigo Testamento, que para ele fazia parte de uma ordem
abolida e obsoleta. Este novo cânone consistia de duas partes: Uma parte
chamada de “o evangelho” (uma edição “purificada” do evangelho de Lucas, mais
condizente), e a outra chamada de “O apóstolo” (uma edição similar “purificada”
das primeiras dez epístolas paulinas).
A compilação deste Canon foi um desafio e um incentivo à
igreja de Roma e as demais igrejas que tinham a mesma doutrina. Se essas
igrejas negassem que o cânone de Marcião era verdadeiro, então, tinham pela
frente o desafio de mostrar qual era o verdadeiro cânone bíblico. Assim,
reagindo aos ensinamentos de Marcião é que encontramos as mais antigas e
explícitas declarações pelo lado da igreja de Roma a respeito da definição do
cânone cristão. Isto não quer dizer que os líderes da igreja católica (até esse
tempo a igreja era católica, isto é, universal, e não romana. NT) não tivesse
um cânone definido e reconhecido. De fato, alguns gnósticos concordavam
substancialmente com os líderes da igreja em Roma quanto aos limites do cânone
do Novo Testamento. Portanto, sobre o testemunho de Tertuliano, o líder gnóstico Valentino, contemporâneo de Marcião,
aparentemente usava o cânone completo da igreja católica – evidentemente um
cânone maior do que o de Marcião. E o testemunho de Tertuliano foi confirmado
depois que se descobriu o texto Evangelho da Verdade de Valentino. “Ao redor de
140-150 d.C., uma coleção de escritos ficou conhecida em Roma e aceitas como
verdadeiras e que eram idênticos aos do nosso Novo Testamento” [1]
A resposta comum da igreja em Roma às reações de Marcião
foi: Não rejeitamos os livros do Antigo Testamento, nós os aceitamos porque
Cristo os citou com muita autoridade. A autoridade divina dos livros dessa nova
era (referindo-se ao NT), não anula nem supera a do AT, mas caminha lado a lado
com ele. Quanto a esses livros “Os Evangelhos”, que reconhecemos conter não
apenas um relato do evangelho, mas quatro relatos, incluindo a verdadeira
versão que Marcião publicou completamente mutilado. “O Apóstolo” que
reconhecemos que contém as treze epístolas de Paulo, mas dos demais apóstolos
também. E conectando “o Evangelho” e “O Apóstolo”, percebe-se uma ênfase
especial no segundo volume da história escrita por Lucas, que Marcião não
incluiu em seu cânone (O livro de Atos). Este documento, conforme é
apresentado, comprova irrefutavelmente o apostolado de Paulo e apresenta
evidências do apostolado de outros apóstolos também. Esse eixo funcional do
cânone cristão é apreciado agora, como não era antes, e tal função é enfatizada
por haver sido colocado entre “O Evangelho” e “O Apóstolo”. É daquele tempo,
sem dúvida, que veio a ser chamado de “Atos dos Apóstolos”, ou ainda, como um
documento anti-marcionita exageradamente o chama de “Atos de Todos os
Apóstolos”.
A primeira menção que se conhece do título “Atos dos
Apóstolos” vem de uma série de prefácios escritos para os quatro evangelhos,
como parte da reação aos ensinamentos de Marcião. São conhecidos como Prólogos
Anti-Marcião aos Evangelhos, e tinha como alvo estabelecer as razões de se
reconhecer os quatro evangelhos como canônicos. Foram escritos primeiramente em
grego, no último quarto do segundo século. O prólogo de Mateus desapareceu; os
de Marcos e João existem em traduções latinas, e quanto a Lucas permanece no
original grego bem como em latim.
O prólogo ao evangelho de Marcos é incompleto, e
um fragmento diz:
“Assim,
Marcos afirma, o Marcos chamado de “selo-indicador” porque seus dedos eram
curtos comparados à proporção física do seu corpo. Ele era o intérprete de
Pedro, e depois da partida de Pedro entregou-se à tarefa de escrever o
evangelho em alguma parte da Itália”.
Este relato do evangelho de Marcos é baseado nas
declarações de Papia, bispo de Hierápolis na Frigia, nos primeiros anos do
segundo século, que escreveu uma obra em cinco volumes intitulada An Exposition of the Dominical Oracles.
Mas, a informação de que Marcos era chamado de “selo-indicador” não sobreviveu
aos fragmentos dos escritos de Papias. [2] O apelido pode ter surgido
devido ao que constava no prólogo. Recentemente surgiram relatos de que a ponta
de seus dedos foram decepadas quando ele se interpôs diante de uma espada no
Jardim do Getsêmane na noite em que Jesus foi preso. [3] Mas, possivelmente o epíteto pode ter sido atribuído, não às suas
mãos, mas ao Evangelho que escreveu, porque o final de seu evangelho parece que
foi mutilado. O epíteto, neste caso, não deveria ser dado ao
evangelista, mas ao seu evangelho, porque o final do evangelho parece ter sido
mutilado [4] era fruto
de uma tradição que o escritor do prólogo não entendeu corretamente.
Então, neste prólogo vem uma longa descrição de
Lucas:
“Lucas era natural
de Antioquia da Síria, médico, discípulo dos apóstolos. Mais tarde se juntou a
Paulo até que este foi decapitado, servindo ao Senhor sem empecilhos porque não
tinha esposa nem filhos. Morreu na Beócia (distrito da Grécia) aos 84 anos de
idade, cheio do Espírito Santo. Assim, depois que dois evangelhos haviam sido
escritos – Mateus na Judéia e Marcos na Itália, Lucas escreveu seu evangelho na
Acaia, por inspiração do Espírito Santo”.
“Lucas afirmavam que
os outros evangelhos foram escritos antes do dele, mas que ele tinha a
obrigação de enviar aos crentes gentílicos um relato completo do curso dos
acontecimentos, e deveria fazê-lo o mais corretamente possível. Seu objetivo
era evitar que os gentios ficassem cativos das fábulas judaicas, e enganados
por heresias e imaginações vãs, afastando-se, assim, da verdade. Portanto, logo
no começo, Lucas nos relatou a história do nascimento de João Batista como a
parte mais importante do relato evangélico, porque João marca o começo do
evangelho, pois ele foi o precursor de nosso Senhor, associando-se com ele na
preparação do Evangelho, na administração do batismo e na comunhão do Espírito.
Este ministério de João foi predito pelos doze profetas. [5] Mais tarde o mesmo Lucas escreveu os Atos dos Apóstolos. Mais
tarde ainda o apóstolo João escreveu o Apocalipse na ilha de Patmos, e depois o
seu evangelho na Ásia.”
A declaração de que Lucas escreveu seu evangelho na
Acaia para os cristãos gregos, talvez tenha como objetivo dar aos cristãos
gregos um dos evangelhos sinópticos, sendo que os demais foram escritos para os
judeus da Judéia e da Itália respectivamente. A ênfase do prólogo
anti-marcionita é óbvia quando refletimos que Marcião cortou (dentre outras
coisas) todo o relato do nascimento e do ministério de João Batista de sua
edição do evangelho de Lucas, já que o relato ligava intimamente a história de
Jesus com a ordem do Antigo Testamento, que Marcião repudiava. A referência aos
“Atos dos Apóstolos”, a primeira ocorrência desse nome – lembra-nos da omissão
desta obra do cânone de Marcião, daí a importância que a igreja deu ao livro de
Atos.Quanto às referências ao apóstolo João, que está em destaque no prólogo
anti-marcionita do evangelho de João, e que deixa a todos intrigados é:
“O evangelho de
João foi publicado e entregue às igrejas pelo próprio João quando ele ainda
estava vivo, conforme o relato de Papia de Hierópolis, discípulo amado de João
cujo relato está em seus cinco livros exegéticos. Ele escreveu o evangelho de
João ditado pelo próprio João. Mas, o herético Marcião era rejeitado por João,
depois ser desaprovado em seus pontos de vista contrários. Marcião havia levado
cartas de seus escritos a ele de seus irmãos no Ponto”.
Agora, aqui está o berço dos mais fascinantes problemas.
O texto latino, onde este prólogo ficou preservado, está ininteligível ou
corrupto em várias partes. Fizemos uma emenda tácita numa das corruptelas onde
diz “seus cinco livros exegéticos”. Ali a fonte da corruptela é evidente e a
emenda também. A referência é sobre o texto acima mencionado de Papia, Exposition of the Dominical Oracles em
cinco volumes. Era Papia realmente um discípulo de João como afirma o prólogo?
Irineu que conhecia as obras de Papia em sua forma original (e nós não a
conhecemos como ele na época), e que se utilizou dos textos, afirma que, de
fato, Papia era discípulo de João. Eusébio também o confirmava, ainda que não
admirasse a inteligência de Papia e não gostasse de seus pontos de vistas
escatológicos.
Como Papia (70-150) era contemporâneo de Policarpo, não
existe problema cronológico nesta declaração, e deveríamos aceitá-la como
verdade. Será que Papia agiu sob as ordens de João como um amanuense? É
possível, mas mais provável é que o prólogo esteja baseado num mal entendimento
de Papia, que disse, na realidade, que “eles” (isto é, o círculo íntimo dos
discípulos de João) escreveram o evangelho de João sob a instrução deste, e não
que Papia tivesse escrito sozinho. Mas, e as referências a Marcião? Foi ele
contemporâneo de João? Mesmo que distinguíssemos dois João neste período
residentes em Éfeso, João o apóstolo e João o presbítero, e supondo que este
último fosse o motivo do prólogo (que acredito não seja), pode-se datar a
atividade herética de Marcião na época de João, o presbítero? [6] Creio que não. É mais provável que esta declaração do prólogo seja
fruto de uma leitura mal feita de Papia, e devemos inferir de que não foi João,
mas o próprio Papia que denunciou Marcião quando o heresiarca chegou a
Hierápolis vindo da província de Ponto. (Em vários lugares temos registros [7] de que,
quando Marcião perguntou a Policarpo de Esmirna se o reconhecia, Policarpo
teria respondido: “Sim, reconheço o primogênito de Satã!”). Concluímos,
portanto, que o escritor ou um dos copistas de nosso prólogo era uma pessoa
ignorante, mas é melhor enxergar pela ótica errada de um ignorante, do que
visualizar a forma original de uma declaração que foi corrigida, por um homem
inteligente que quer que se concorde com o que ele pensa ser a verdade.
Certamente que todo esforço foi feito para mostrar como Marcião e suas obras
foram repudiadas pelas autoridades respeitáveis da época.
Texto muratoriano
Outro resultado da reação anti-Marcião, não tão
anti-Marcião como estes prólogos aos evangelhos, é uma lista dos livros do Novo
Testamento que possivelmente represente o cânone aceito em Roma no fim do
segundo século. Esta lista foi encontrada em 1740 pelo antiquário L. A.
Muratori, e é chamado de cânone Muratoriano. É um texto em latim, mas o texto
original era em grego. Está mutilado no começo, mas como as partes seguintes
chamam Lucas de terceiro evangelho, não é difícil assegurar que Mateus e Marcos
foram originalmente chamados de primeiro e segundo evangelhos. Abaixo uma
tradução da parte que pôde ser lida:
“… O
terceiro livro dos evangelhos, conforme Lucas, foi escrito em ordem por Lucas o
médico, em seu próprio nome logo depois da ascensão de Cristo, quando Paulo o
levou consigo como discípulo e companheiro de viagem: Ele (Lucas) nunca viu
nosso Senhor na carne. Lucas, então, até onde pôde traçar o curso dos
acontecimentos, começa sua narrativa do nascimento de João Batista”.
“O quarto
evangelho é o de João, um dos discípulos. Quando os discípulos de João e os
bispos lhe solicitaram que escrevesse, ele disse: “Jejuem comigo durante três
dias, começando hoje, e o que for revelado a qualquer um, será compartilhado
uns com os outros”. Na mesma noite André, um dos apóstolos teve uma revelação
de que João deveria se dedicar a escrever a história, e eles juntos fariam a
revisão. E assim, mesmo que os vários evangelhos tenham começos diferentes,
feitos por eles, diferença alguma faz para a fé dos cristãos, porque o mesmo
Espírito controlador estava com eles durante toda a história do nascimento do
Senhor, sua paixão, ressurreição, sua conversa com os discípulos e seus dois
adventos – o primeiro humilde e sem honra, que é sua primeira vinda; o segundo
em poder real e em glória, sua segunda vinda. O que os maravilhou é que João em
suas epístolas fala de suas experiências, uma a uma, dizendo: “O que era desde
o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios
olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da
vida” (1 Jo 1.1 e ss.). Porque nessas palavras João não se apresenta apenas como um
espectador e ouvinte, mas como escritor de todas as maravilhosas obras pela
ordem.”
“Então, os
Atos de todos os apóstolos foram escritos em um livro. Lucas fala ao
“excelentíssimo Teófilo” de que os vários acontecimentos tiveram lugar em sua
presença, e de fato ele omite a morte de Pedro, bem como a viagem de Paulo
quando este saiu de Roma em direitura da Espanha.”
Agora, as
epístolas escritas por Paulo por si mesmas relatam a quem quiser onde eles
estavam, para onde foram enviados e por que. Em primeiro lugar proíbe aos
coríntios de se envolverem em divisões e heresias; aos gálatas proíbe a
circuncisão, mas aos romanos escreveu demoradamente a respeito da sequência das
escrituras, destacando que Cristo era o tema principal. Não sem faz necessário
que examinemos os detalhes, já que o abençoado Paulo, ele mesmo, seguindo o
plano de João, apóstolo antes dele, escreveu nominalmente para sete igrejas na
seguinte ordem: (1) Aos corintos, (2) aos efésios; (3) aos filipenses; (4) aos
colossenses; (5) aos gálatas; (6) aos tessalonicenses e (7) aos romanos. (Aos
coríntios e aos tessalonicenses, de fato, ele escreveu em duas partes, só pelo
fato de alguém querer contradizer). E a igreja espalhada pelo mundo é
reconhecidamente uma, pois João, no Apocalipse, mesmo escrevendo às sete
igrejas, fala, de fato, para todas elas”.
“Além disso, uma
epístola (de Paulo) foi escrita a Filemom, uma para Tito e duas para Timóteo,
de boa-vontade e como amizade, para honra da igreja católica, a fim de pôr em
ordem os procedimentos eclesiásticos. Existe também uma possível epístola
enviada aos de Laodicéia e outra aos alexandrinos – ambas em nome de Paulo
conforme a heresia de Marcião, e muitas outras que não podem ser admitidas na
igreja católica, pois não se pode misturar veneno com mel”.
“Uma epístola de
Judas e duas já mencionadas escritas por João estão incluídas na lista
católica, e também o livro de Sabedoria escrito pelos amigos de Salomão em sua
memória. [8] Chegaram até nós o apenas o Apocalipse de João e as cartas de
Pedro, mas alguns recusavam a ler estas últimas na igreja.”
“Quanto ao Pastor este
foi recentemente escrito na cidade de Roma por Hermas, durante o tempo em que
seu irmão Pio era bispo da cidade de Roma. E, portanto, deveria ser lido, mas
não deve ser publicado às pessoas da igreja juntamente com os profetas, cujo
número é completo, ou com os apóstolos dos últimos dias. Mas os escritos de
Arsinoite Valentino e seus associados não são admitidos de forma alguma.
Escreveram um novo livro de Salmos para Marcião juntamente com Basilides e o
asiático fundador de uma seita na Frigia”.
As informações miscelâneas referidas nesta lista sobre a
origem individual dos livros do Novo Testamento não têm valor algum; suas
declarações a respeito dos evangelhos, por exemplo, merecem menos considerações
que aquelas do prólogo anti-Marcião. O valor do documento está na declaração de
que vários livros foram reconhecidos como canônicos na igreja de Roma no final
do segundo século. – Os quatro evangelhos, Atos, as treze epístolas de Paulo,
juntamente com a epístola de Judas, duas epístolas de João (possivelmente) a
segunda e a terceira eram reconhecidas como sendo uma apenas; e o Apocalipse de
João. E foi incluído um segundo Apocalipse atribuído a Pedro. Conhecemos este
livro. Outros escritores cristãos relatam que era lido nas igrejas, e o retrato
lúrido dos tormentos dos que são condenados permeiam a imagem medieval do tema,
como aquelas do Inferno de Dante. O
que surpreende é que não há menção da primeira epístola de Pedro no cânone
romano. Zahn achava que a referência ao Apocalipse de Pedro era uma corruptela
das epístolas de Pedro. Ele sugeriu que as palavras em itálico caíssem fora,
como segue: “O Apocalipse de João e a epístola de Pedro. Existe outra epístola
de Pedro, que algumas pessoas recusam a ler nas igrejas”. [9] Mas aqui o texto dos fragmentos não precisa de emendas, e parece
que 1 Pedro foi deixado de lado acidentalmente por algum escriba. O Pastor de Hermas que já mencionamos,
recomenda sua leitura com o propósito de devoção e edificação, mas não foi incluído
entre os escritos canônicos – os dos apóstolos e profetas. (Existe a idéia de
que, se a lista dos escritos proféticos não tivesse sido encerrada, o Pastor se encaixaria no cânone dos
escritos apostólicos). Os escritos de Marcião e os livros gnósticos foram
banidos juntamente.
Em resumo, temos aqui o reconhecimento de
praticamente o mesmo Novo Testamento que usamos. A omissão da epístola aos
Hebreus é digna de nota, porque Clemente já a conhecia um século antes;
provavelmente a igreja de Roma no final do segundo século sabia que não se
tratava da obra de um apóstolo. Tiago e 2 Pedro também foram perdidos.
Irineu, cujos escritos são contemporâneos da lista Muratoriana,
apresenta a mesma lista. As evidências de Irineu são importantes por causa de
seus contatos universais: Ele passou a juventude na Ásia Menor e a idade adulta
em Gaul, e estava em contato sempre com a igreja de Roma. Além de reconhecer os
quatro evangelhos, ele confirma a canonicidade de Atos, das epístolas paulinas
(exceção de Filemon, que ele não teve oportunidade de mencionar), de 1 Pedro, 1
João e Apocalipse. Ele menciona o Pastor de Hermas como “escritura”, mas não o
inclui na lista dos escritos apostólicos.
Orígenes de Alexandria, e mais tarde de Cesaréia,
escrevendo lá por 230 nomeia esses mesmos livros (incluindo Filemon) como
de canonicidade reconhecida, e acrescenta que Hebreus, 2 Pedro, e 2 e 3 João,
Tiago e Judas, com a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas, a Didaquê e o
Evangelho segundo Hebreus eram disputados como epistolares. (A Epístola de
Barnabé era um tratado escrito entre os anos 70 e 135 provando que os judeus
confundiram o sentido real dos cerimoniais do Antigo Testamento ao interpretá-los
literalmente. O Evangelho segundo Hebreus prece ter sido uma variação do
evangelho de Mateus usado por alguns grupos de judeus cristãos). Basicamente à
época de Orígenes já havia um consenso sobre a maioria dos livros do Novo
Testamento; havia uma pequena margem de dúvida sobre alguns; alguns foram
canonizados enquanto outros perderam confiabilidade e aceitação.
No começo do quarto século, Eusébio de Cesaréia menciona todos os livros de nosso Novo
Testamento como universalmente aceitos nas igrejas, com exceção de cinco
(Tiago, Judas, 2 Pedro, 2 e 3 João), que, mesmo reconhecidos pela maioria, eram
aceitos por outros (provavelmente as igrejas siríacas). Mais adiante no quarto
século encontramos a nossa lista de vinte e sete livros citados por Atanásio de
Alexandria (367), por Jerônimo e Agostinho no Ocidente.
O cânone não é fruto de uma
decisão de sínodo ou concílio
Deve ficar claro, portanto, que nosso Novo
Testamento de vinte e sete livros não é fruto de uma escolha arbitrária feita
por algum sínodo ou grupos que, ao redor de uma mesa, com um montão de
documentos, disseram: “Agora vamos decidir quais destes devem ser descartados
por não terem autoridade apostólica”. Somente depois que os vinte e sete livros
eram totalmente aceitos pelos cristãos ao redor do mundo é que eles foram
objeto de um decreto de um concílio eclesiástico – o sínodo do Norte da África
de 393 [10] (cujas
descobertas foram confirmadas pelo sínodo de Cartago quatro anos mais tarde).
E, quando finalmente um concílio da igreja deu a decisão final sobre o tema,
tudo o que fez foi ratificar o consenso universal dos cristãos que (e todos
assim cremos) foram guiados a essa decisão por uma sabedoria maior que a que
possuíam. (Sabedoria do Espírito Santo, NT). A formação do cânone não foi uma
decisão baseada em pesquisas, mas o reconhecimento de que eram livros aceitos
em todo o mundo cristão da época.
A canonicidade implica em suprema autoridade nas
questões de fé. Ao incluir um documento no cânone os antigos cristãos afirmavam
que o livro poderia ser usado no estabelecimento da doutrina, seja em debates
com a própria igreja de Roma ou em disputas com os hereges. Mas, tais livros foram
incluídos no cânone porque os cristãos reconheciam sua autoridade. Os livros
não adquiriram autoridade ao serem incluídos no cânone. Um dos critérios
principais (e não é o único), para o reconhecimento da autoridade e da
qualidade canônica de uma obra era sua autoria apostólica. Isso é tão
verdadeiro que vários grupos querendo trazer sua própria linha doutrinária
chamavam seus escritos de Evangelhos ou livro de Atos, ou epístolas, e até
mesmo Apocalipse e colocavam nele o nome de um apóstolo. Por isso apareceu uma
obra intitulada o Evangelho de Pedro com pontos de vista dos docetistas que era
lido inocentemente por uma igreja siríaca no final do segundo século, até que o
bispo de Antioquia, Serapião ouviu falar sobre isso e proibiu seu uso.
É fato que vários livros eram comumente lidos na igreja
sem serem formalmente canonizados. Afinal, não havia muitas cópias, e se o
livro era para edificação, a hora mais conveniente de edificar os irmãos era
durante as reuniões da igreja. Podemos comparar o que afirma o documento
Muratoriano sobre o Pastor de Hermas.
Alguns dos manuscritos mais importantes da Bíblia grega incluem no final,
alguns dos livros que podem ser lidos pela igreja. O Código Sinaítico contém a
Epístola de Barnabé e parte do Pastor;
o código alexandrino contém as cartas de Clemente de Roma e uma antiga homilia
comumente e erroneamente chamada de Segunda Epístola de Clemente. [11]
Existiu também um livro herético de Atos chamado de Atos de João produzido na metade do
segundo século por Leukios, escritor que apresenta o apóstolo João como um
gnóstico, um mestre, e continha também um hino gnóstico interessante no qual
Jesus acompanha seus seguidores, apresentando-se com danças. Este hino (que
Gustav Holst) colocou uma música contém uma letra perfeita e ortodoxa, muito
semelhante ao evangelho canônico de João:
Para quem contempla, uma lâmpada eu sou;
Tu que me conheces, espelho sou;
Tu que bates, uma porta sou;
O caminho por onde segues.
Outro livro apócrifo Atos de Paulo não era tanto uma composição herética, mas uma obra
de ficção histórica escrito por um presbítero da Ásia e influenciado por seu
menos imaginativo irmão, para quem “uma novela era uma mentira”. Ele se
defendia de que escrevera por amor a Paulo, o que pode ser verdadeiro, mas
devido a isso foi afastado do presbitério. Mesmo sendo uma obra de ficção jorra
muita luz sobre o cristianismo na Ásia Menor no segundo século e preserva um
retrato de Paulo que o descreve como uma pessoa de boa aparência.
Outro problema no que diz respeito à separação entre a
literatura canônica e as demais surgiu durante a última perseguição imperial.
Como dissemos, durante as perseguições os soldados romanos vasculhavam as casas
dos cristãos na tentativa de destruir os livros sagrados. Então, quando a
polícia chegava numa igreja e exigia que os textos bíblicos fossem entregues,
os cristãos eram obrigados a entregar o que possuíam. Um bom cristão deveria defender
os escritos sagrados com a própria vida. Mas, a igreja podia ter outros livros
que não faziam parte dos textos sagrados – Pastor de Hermas, por exemplo, ou um
tratado da ordem interna da igreja. A polícia não sabia distinguir o que era do
cânone ou não, e ficava satisfeita quando lhes entregavam qualquer literatura.
Não seria bem melhor salvar os livros sagrados? Alguém poderá discutir se eles
erravam ou não, fazendo isso. Claro, a questão não ajudava a fixar os limites
canônicos, e por este tempo (303 d.C.), os livros sagrados já estavam
definidos.
Marcião. [12]
O historiador Philip Schaff afirma que Marcião era o
cara mais honesto, prático e perigoso entre os gnósticos; cheio de energia e
zelo pela reforma, incansável e excêntrico. Filho do bispo Sinope, de Ponto,
converteu-se, doou suas propriedades para a igreja, mas foi excomungado por seu
próprio pai, talvez por pregar heresias e o desprezo a autoridade. O zelo por
um cristianismo puro levou-o a heresias. Ele foi a Roma ao redor do ano 140
para discutir com os bispos suas idéias.
1. Ele somente via diferenças superficiais nas
escrituras, e não via a harmonia profunda.
2. Ele não valorizava a história e colocava o
cristianismo em conflito com as revelações de Deus. Deus havia abandonado o
mundo por milhares de anos até reaparecer em Cristo.
3. Ele escreveu um resumo do evangelho de Lucas e
das epístolas de Paulo, bem como uma obra contradizendo o antigo e o novo
testamento.
Irineu relata que quando Marcião se encontrou com
Policarpo de Smirna lhe perguntou: Você sabe quem eu sou? Policarpo teria
respondido: Sei sim, você é o primogênito de Satanás.
4. Marcião pregava sobre duas ou três forças principais:
A força de um Deus bondoso; que Cristo mostrou ao mundo; as forças do mal,
governadas pelo Maligno, e o criador do mundo, que é finito, imperfeito, e
irado Deus dos judeus. (Daqui vem a teologia relacional).
5. Rejeitava todos os livros do AT e usava o texto
de Mateus 5.17 como justificativa: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os
Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”.
6. Ele acreditava que o cristianismo não tinha ligação
com o passado, e que havia surgido abruptamente dos céus. Cristo não era
nascido, mas desceu repentinamente na cidade de Cafarnaum no décimo quinto ano
de Tibério. E apareceu como alguém que veio manifestar a Deus que o enviou.
Jesus nada tem a ver com o Messias anunciado no AT; sua morte era uma ilusão,
ainda que tivesse um sentido real. Esta a idéia do docetismo. Deus teria
chamado a Paulo para pregar esta “verdade”.
7. Marcião formou seu próprio Canon do NT que consistia
de 11 livros, uma compilação mutilada do livro de Lucas e dez epístolas de
Paulo. Ele colocava por ordem de escritos Gálatas, chamava Efésios de epístola
aos Laodicences; rejeitava as epístolas pastorais, a epístola aos hebreus,
Mateus, Marco, João e Atos, as epístolas universais e o Apocalipse.
Ele retirou do evangelho de Lucas o nascimento e o
ministério de João Batista.
Teria cortado os capítulos 15 e 16 de Romanos, e os
incorporado ao livro de Éfeso.
8. Pregava e praticava o ascetismo, como
disciplina pessoal, não aceitava que se participassem de festas pagãs, e era
contra o casamento, o comer carne e beber vinho. Só aceitava batizar casados
desde que estes se abstivessem de toda relação sexual.
9. Eliminou o vinho da ceia, e manteve apenas o pão, o b
atismo em águas, a unção com óleo e uma mistura de leite e mel que era dado aos
recém-batizados. Marcião realizava o batismo vicário (pelos mortos).
10. O posicionamento de Marcião fez a igreja acelerar o cânone
dos livros do NT.
[2] Texto dos escritos de
Hipolito, Heresias, VII, 18
[3] Veja Marcos 14.51 e ss.
cf. J. A. Robertson, The Ridden Romance
of the New Testament (1920), p 35, Relatos mais extravagantes afirmam que
ele teria amputado seu dedo para desqualificar-se para o service sacerdotal.
[4] Nossa evidência não se
baseia no texto original de Marcos 16.8 (os vv. 9-20 parecem vir de outra
fonte), mas se o evangelho realmente termina no capítulo 16.8 ou o final teria
sido perdido ao longo dos anos.
[5] Isto é, profetas menores,
uma referência a Malaquias 3.1
[6] O prólogo anti marcionita
de Lucas identifica a João, o evangelista, como sendo o apóstolo.
[7] Irineu, Contra Heresias,
III, 3.4
[8] É surpreendente ver o
livro de Sabedoria, dos apócrifos do AT mencionado aqui. Pelo que se sabe,
pertence ao período do NT e não do Antigo Testamento. O Teólogo Zahn acreditava
que o título original dizia: “A Sabedoria de Salomão, escrito em sua honjra por
Filo” (O filósofo judeu de Alexandria, cerca de 20 a. C. a 50 d. C). O
comentarista do século XV Hugh de St. Victor conhecia algumas pessoas que
afirmavam que este livro fora escrito por Filo. O teólogo Mgr. R. A. Knox afirmou
a este escritor que estava escrevendo uma tese de que os escritos eram de Paulo
antes de se converter!
[9] Teólogo Zahn, Geschichte
des neutestamentlichen Kanons, II, 1890, p. 142
[10] A igreja da qual
Agostinho se tornou bispo em 395.
[11] Originalmente continha
também a coleção de hinos judeus do primeiro século a. C., conhecidos como Salmos de Salomão.
[12] N.T. Esta parte
sobre Marcião foi acrescentada por este tradutor e historiador como um anexo
extraído de Church History de Philip Schaff.